Entrevista realizada pela professora Maíra Cordeiro.
Você, professor de Atendimento Educacional Especializado, ou mesmo que atua em sala de aula e trabalha com alunos de inclusão, já se perguntou como é o trabalho de Acessoria Pedagógica? Você sabe quem são e como trabalham os profissionais que realizam este tipo de serviço, também oferecido por nós do NAPPB Canoas RS? Para responder a estas dúvidas, há aqui uma entrevista com Isabel Cristina, pedagoga com formação em ABA, que atua no CIAM, Centro Israelita de Apoio Multidisciplinar, instituição de São Paulo que presta atendimento a crianças, jovens e adultos com deficiência intelectual e suas famílias. Na entrevista abaixo, Isabel traz reflexões sobre a sua atuação e relação com outros profissionais.
Maíra- Me fale um pouco sobre você: seu nome, sua formação. Isabel: Eu me chamo Isabel, tenho 22 anos, sou formada em pedagogia, tenho curso de ABA, que é a sigla em inglês para Análise do Comportamento Aplicada, tenho habilitação para trabalhar com clínica com TEA, Transtorno do Espectro Autista. Faço pós-graduação em Neurociência do Desenvolvimento Infantil e atualmente trabalho numa ONG. Trabalho como pedagoga numa ONG que presta suporte a criança com deficiência intelectual.
Maíra - Houve algum motivo especial que te levou para a Educação Especial?
Isabel - Na verdade, desde o ensino médio eu sempre tive esse olhar para quem ninguém olhava, de cuidar de quem ninguém cuida… Todas as minhas opções de faculdade eram serviço social, ciências sociais, antropologia que eu gosto, pedagogia… Então sempre tive esse olhar. Então minha prima se formou em psicologia e ela fez o ABA e ela falou: “Porquê você não faz o ABA, para cuidar de TEA? As crianças com TEA precisam.” Então eu fiz, porém eu não gostei muito da parte clínica, pois ela é muito cara. Então eu comecei a procurar vagas no setor social, que unia o que eu sempre quis, ter um olhar para quem não recebe esse cuidado e comecei a trabalhar no CIAM. Fui chamada como pedagoga para fazer parte de um projeto que há no CIAM que cuida de visitas escolares, então cuida do relacionamento das famílias em vulnerabilidade social, das mães das crianças com deficiência e do relacionamento delas com as escolas. Então posso falar que foi aí que eu me encontrei enquanto pedagoga e atuante com as pessoas com deficiência.
Maíra - Então te consideras uma pessoa que sempre teve esse olhar para o diferente, que sempre se interessou pelas pessoas que têm ali uma certa diferença que sofrem talvez uma certa segregação… É isso?
Isabel - Meu primeiro emprego foi como Jovem Aprendiz no metrô de São Paulo e o meu trabalho era prestar suporte aos deficientes visuais. Então eu os auxiliava a descer a escada, os colocava no trem, os levava até a rua… Então meu primeiro contato com o meio profissional foi através das pessoas com deficiência. E eu vi como eles eram capazes de fazer tudo! Eu tinha contato com deficientes que tocavam bateria, que trabalhavam, que eram bancários… Eles não eram menos do que ninguém. O homem com deficiência que era gerente de banco era tão gerente quanto a pessoa que não tinha baixa visão; que não era deficiente visual. O que tocava bateria tocava de forma tão fenomenal quanto… Eu sempre me interessei, além desse tema, por outros movimentos, outras lutas de minorias, como a luta da mulher, sempre tive esse olhar… Sempre fui uma pessoa meio revolucionária. Sempre achei que a gente tinha que olhar para todas as pessoas.
Maíra - Então o teu trabalho é principalmente prestando esse tipo de assessoria para as escolas e para as famílias? Então ele não é um trabalho direto com o aluno?
Isabel - Sim. Eu brinco que a CIAM me trouxe outra formação que a faculdade não me deu, pois eu me formei para lidar com as crianças. Até falo brincando: “Gente, eu me formei para cantar cantigas de roda, não para lidar com as famílias.” Mas a gente presta serviço de acolhimento para essas famílias. Primeiro prestamos uma escuta qualificada, toda a questão de entender qual é a configuração. Então vamos vendo que a questão da família nunca é só da escola, vai perpassar todas as áreas. Não se pode tratar a escola como um problema isolado, a família como outro problema, a sociedade como outro problema. É um problema comunitário.
Maíra - Os alunos para os quais tu prestas assessoria frequentam a escola regular? Frequentam outras escolas? Eles frequentam apenas atendimentos? Eu acredito que seja escola regular visto que tu prestas assessoria.
Isabel - Nós prestamos assessoria para todas as escolas, sejam públicas ou privadas, dentro do município de São Paulo. A ONG CIAM atende crianças de qualquer município, mas o projeto é custeado pelo FUNCAD , então nós atendemos, por conta do FUNCAD, crianças do município de São Paulo. Isso não me impede de prestar apoio, de prestar acolhimento a famílias de outros municípios.
Maíra - As crianças que o projeto atende vêm principalmente da rede municipal de São Paulo ou das escolas estaduais também? A maioria dos seus alunos vem de qual rede?
Isabel - A maioria está na rede municipal. Até 7 anos. Estão indo da EMEI para a EMEF. Eu pego a fase de transição. Até os 4 anos, é obrigatório, as crianças estão na creche. Quando elas fazem 4 anos, por lei é obrigatório elas irem para a Educação Infantil. Então eu pego algumas na fase de transição da fase de creche, que é a pré-escola, para a educação infantil. E depois, até os 6 anos e 11 meses, elas vão para o primeiro ano, elas vão para o Fundamental. Eu pego essa transição. A maioria estuda na escola pública municipal, só que eu presto assessoria para qualquer escola que o atendido esteja. Por exemplo, o seu filho tem deficiência, ele está no CIAM, ele tem uma demanda escolar e a escola é privada. Se a escola estiver disposta a me receber nós vamos até a rede privada.
Maíra - É muito interessante o seu trabalho. quantos alunos você está acompanhando?
Isabel - Eu acompanhei ano passado, de abril até dezembro, uma média de 35 a 40 crianças.
Maíra - É praticamente uma turma inteira do Ensino Fundamental. Qual é a sua carga horária de trabalho?
Isabel - Eu trabalho 20 horas semanais. Trabalho apenas 4h por dia na instituição, sendo que dois destes dias são de trabalho externo, são quando realizamos as visitas às escolas. O mesmo apoio que prestamos às famílias, também prestamos às escolas. Então nós vamos para o chão da escola, sentamos, conversamos com o professor, conversamos com a coordenação… Nunca chegamos lá com os dois pés no peito, sempre prestando o mesmo suporte educacional e principalmente emocional, porque a deficiência perpassa a fragilidade de ambas as partes. A importância do apoio é tanto para a família… Porquê a mãe precisa desse espaço. A mãe de uma criança com deficiência muitas vezes pára tudo para viver para esse filho. E além de viver para esse filho ela vive um luto. Quando o filho nasce com deficiência, muitas descobrem na hora do parto, por vezes não têm nenhum tipo de tato emocional para lidar com esse diagnóstico. Muitas não sabem os tipos de deficiência que existem. Hoje em dia, dentro da deficiência intelectual, o Down é mais comum, mas não existe só Síndrome de Down. Então a mãe descobre na hora do parto, muitas vezes o marido a deixa, o genitor abandona a família, a avó muitas vezes renega a criança, ela diz: “Eu não vou ser avó de uma criança com deficiência.” A mãe fica obrigada a parar de trabalhar, muitas ficam em subempregos, vendem bolo de porta em porta… Tanto que a gente fez uma Festa Junina Empreendedora. As mães que tinham como estar montando as barracas, vendendo… Nós tivemos barracas nossas, fornecemos algumas coisas, as prendas… Mas as mães, por exemplo, vendiam brigadeiro, vendiam bolo, outras vendiam panos de prato… Nós apenas cedemos as barracas para que elas tivessem o momento ali para ganhar seu dinheiro, para arrecadar o seu sustento. Então a deficiência intelectual, ela perpassa a criança, obviamente, a família…Perpassa também as outras crianças, que acabam aprendendo desde cedo a lidar com com o diverso, a lidar com as peculiaridades do próximo, e também para o professor. Ele se vê ali em uma saia justa, percebendo: “Eu preciso mudar a minha prática pedagógica. Eu preciso ir além daquilo que a minha formação trouxe, que a minha própria opção de linha pedagógica me oferece. Eu preciso ir além para contemplar essa criança.” Então a inclusão da pessoa com deficiência perpassa todo mundo. Ela é importante, é riquíssima para todo mundo.
Maíra - Como você vê a questão da inclusão na escola regular? Você acha que a escola regular consegue dar o suporte, dar o apoio que o aluno precisa? Você acha que o atendimento da escola regular é o suficiente para o aluno? O que você vê que falta e o que que você vê que está melhorando? Como você vê essas questões pela sua experiência, pelo acompanhamento que você realiza com os alunos?
Isabel - Eu vou separar essa pergunta em duas, vou falar do que eu acho que está melhorando para depois falar do que seria o ideal de inclusão. Obviamente houve uma melhora muito grande, quando se considera as pessoas com mais de 50 anos, mais de 40, ou mesmo mais de 30 e as indaga sobre quantas pessoas com deficiência tinha na sua sala de aula, com quantas pessoas com deficiência a pessoa estudou, não existia, não tinha. As pessoas com deficiência não frequentavam o espaço educacional porque nem era garantido a elas por lei. Essa lei ainda não existia. Óbvio que a lei ainda é falha, é demorada, ela não acontece de fato muitas vezes. Entre a promulgação da lei e sua execução há um abismo. Antes, porém, a educação era completamente excludente, porque não havia, nem se imaginava falar em inclusão. As crianças não ocupavam esses espaços. Muitas nem saíam de casa por conta de todo esse preconceito, toda essa vergonha, toda essa falta de conhecimento do que é uma deficiência. Hoje se consegue diferenciar deficiência, transtorno, síndrome e dificuldades de aprendizagem, que podem ser adquiridas por conta de um trauma ou podem vir do nascimento. Hoje nós temos muito conhecimento a gente tem a ciência ao lado da educação, a ciência ao lado das políticas públicas, nos trazendo conhecimento sobre aquele corpo que é diverso, do corpo que sofre de síndrome, deficiências… E isso vai perpassar a escola, porque se temos a medicina, temos conhecimento, nós precisamos trazer para o âmbito da educação. A escola é um reflexo da nossa sociedade como um todo. Há dois paradigmas na educação. Vemos a escola como um reflexo da nossa sociedade, tudo que ecoa na sociedade vai reverberar na escola de alguma forma, adentra os muros da escola. A violência contra a mulher acaba caindo dentro da escola, a violência com a pessoa com deficiência ocorre, vai ecoar dentro da escola. Nós não podemos esquecer também que a escola é um local social, ela é um aparato dessa política desse governo. Não é uma questão de governantes, mas é questão de que a escola é um aparato social. Ela é utilizada como objeto de Estado e nós não podemos esquecer disso, porque, se a escola é um objeto de Estado. Até chegar no professor há várias camadas. Nós falamos sobre as questões educacionais, quando o professor fala que falta apoio, que falta material, que falta suporte, se está falando de várias camadas que vão perpassar a lei. Então que sociedade queremos formar? Para quem queremos essa sociedade? Nós falamos hoje muito sobre a educação para o mercado de trabalho. Então que tipo de educação nós queremos? Quem queremos que ocupe o mercado de trabalho? Quem vai chegar lá? Nós veremos muitos cafés, como por exemplo tem um café aqui em São Paulo onde as pessoas que trabalham são pessoas com Síndrome de Down. Eles servem, levam o café até sua mesa, é um café só com pessoas com Síndrome de Down, com deficiência intelectual, mas é um café. São Paulo tem um café a cada esquina. Essa formação estamos dando para quem? Porque tudo que nós fazemos é político, são atos políticos. Nós assinamos o ideal. Então perpassa várias camadas.
Sobre o que falta: por exemplo, quando vamos articular com outros municípios vamos vendo. São Paulo tem vários déficits ainda, mas São Paulo já tem as auxiliares de vida escolar, que são as que cuidam da alimentação, higiene e locomoção das crianças com deficiência. Então, quando a criança com deficiência já está bem assistida ela pode atender as outras crianças. Já há o PAEE, Professor de Apoio à Educação Especial, fica junto com o professor da rede regular. Então se vê que São Paulo tem, mas Osasco é carente disso, é carente desse tipo de apoio. Itapevi também. Então se vê como faltam leis de políticas públicas gerais, falta uma lei estadual para ajudá-los e que falta também um olhar próprio de cada pessoa. Existe a lei de cátedra, cada professor é livre para ensinar aquilo que ele acha mais pertinente dentro do âmbito do conhecimento científico. Então esse professor, dentro da liberdade de cátedra dele, está incluindo? Há dois pontos nisso: pensar até onde vai a liberdade do direito de ensinar. Do direito de ensinar a quem? A quem nós estamos ensinando? Nós estamos ensinando a todas as nossas crianças? De qual forma? De uma forma generalista? De uma forma superficial? Ou nós estamos pegando na mão das nossas crianças e realmente levando todos a formação adequada, a formação da cidadania, a formação dos seus direitos? Então se eu tivesse em sala uma criança que reconhece as cores e uma criança com deficiência que ficasse no canto, só brincando com uma massinha, eu não estaria levando a educação a todos. Eu não estaria construindo nem a minha lei de cátedra, eu estaria usando o meu direito contra mim.
Maíra - É possível verificar uma resistência, principalmente vinda de alguns professores a fazer os currículos adaptados. Você chega a observar esse tipo de resistência nos professores dos alunos que você acompanha?
Isabel - É engraçado falar isso porque eu sinto uma resistência muito grande da família em entender, por exemplo, que Educação Infantil não alfabetiza nem crianças com deficiência nem crianças sem deficiência. É um anseio muito grande, das famílias das crianças com deficiência, a fala e a escrita. Então as mães anseiam muito que as crianças sejam alfabetizadas. Para elas o que mais vai igualar o filho delas aos outros alunos é se o filho falar e se o filho escrever, porém as formas de comunicar são muitas. Eu sempre digo: “Seu filho não fala, mas ele se comunica o tempo todo”. Às vezes até chegar na terapia ele já criou estratégias por si próprio para expressar aquilo que ele quer dizer, aquilo que ele almeja, aquilo que ele deseja. As mães não entendem ainda a importância da educação infantil, a importância do brincar, a importância do conviver, do socializar. Eu vejo como uma fase riquíssima de potencialidade para as crianças com deficiência.
Maíra - Eu fiz educação infantil desde os dois anos de idade, em uma época que não era tão comum. Eu tive essa oportunidade e eu sinto que potencializou sim. Eu tinha TEA e não sabia, minha família não sabia. Entendo essa necessidade que você traz de conscientizar os pais.
Isabel - Na verdade não tem como falar no Ensino Fundamental sem falar da importância da Educação Infantil porque ela vai dar a base sólida para o ensino fundamental. Por isso que eu quis falar sobre isso, porque a educação infantil não tem o caráter alfabetizador, porém quando se é uma mãe de criança com deficiência o seu filho já entra “atrasado” na sociedade, ele já nasce “atrasado”, já nasce com esse “atraso” entre aspas, como se ele sempre estivesse atrás das outras crianças, em uma estrada para percorrer. Foi por isso que eu salientei o papel da Educação Infantil, porque ela coloca todo mundo no mesmo patamar. Por mais que a criança não socialize da mesma forma que as outras crianças, ela vai estar ali no mesmo espaço e enfileirando seus carrinhos, brincando com aquilo que acha a atenção com o seu hiperfoco. Então ela pode não estar ali diretamente, brincando com outra criança, mas ela vai estar ali ocupando esse espaço, uma parte daquele espaço. Por isso que eu que é importante para as famílias entenderem a Educação Infantil. Ela traz muito da Equidade para criança. Eu acho que o conceito de Equidade, quando a gente fala de pessoas com deficiência… Eu gosto muito do conceito de Equidade, buscar ferramentas próprias para que aquela criança atinja aquele máximo potencial, sabendo que o potencial é único, independente de cada criança com deficiência. Cada criança com deficiência vai ter o seu próprio potencial. Assim como as próprias coisas que precisam evoluir, precisam progredir quando não tem nenhuma deficiência. Por exemplo: eu era muito ruim em matemática, eu amava história, mas matemática era meu fraco. Era na matemática que eu precisava de um apoio maior. As crianças com deficiência têm grande potencialidade e a Educação Infantil que vai cuidar de tudo isso e que vai dar essa base para o Ensino Fundamental. A partir do Fundamental, a partir do primeiro aninho… Recebi uma criança com deficiência onde ela saiu desse modelo mais livre, desse modelo lúdico do brincar e vai para o modelo tradicional de educação onde as crianças ficam todas sentadas enfileiradas. Ela carrega uma mochila pesadíssima, com vários cadernos, ela vai começar a segurar o lápis, vai começar a aprender as letras, nem sempre é fácil para criança com deficiência, e ela nem segurou lápis ainda. Então será que se eu modificar esse modelo, se eu construir aquele material concreto, construir um alfabeto com as crianças, eu não consigo incluir a criança com deficiência de uma forma que faça com que as outras crianças todas trabalhem juntas de um modo menos tradicional? Será que não há teóricos pedagógicos um pouco mais novos para trazer ou será que há resistência ainda ao novo, às diferenças, às diferentes formas? E aí falta formação, falta tempo, porque de novo, a escola é um aparato biológico, não podemos esquecer disso. Eu quero frisar muito isso: são camadas. Então nós vamos ocupar esses espaços Mas vamos olhar também para família da criança com deficiência, que tem resistência a mandá-la para a escola. Há crianças que faltam 20 dias por mês. Então é sobre várias camadas que nós estamos falando. Precisamos ressaltar, preciso deixar bem claro se possível, a inclusão da criança com deficiência não é uma problemática isolada. Não se pode isolar algo que é extremamente complexo, porque tem muitos fatores que influenciam, e só vai melhorar se este tema não for tratado como se fossem fatores isolados. Não é culpa da escola, não é culpa da família, é culpa do governo mas não é só o governo. É necessário parar de tratar como se fossem fatores isolados. A família precisa da rede de suporte primária, precisa das UBS, precisa de mais CAPS, precisa de mais profissionais multi-disciplinares dentro das escolas, ou que consigam atender as demandas da escola. Porque há crianças com terra hoje dentro da escola e falta ensino de manejo de comportamento, falta ensinar para as escolas o que é crise. Então há a necessidade do psicólogo, necessidade do psicopedagogo, necessidade do educador ABA, necessidade de um CAPS próxima à escola, onde haja vagas para atender essas demandas. Vocês percebem como não se pode tapar os olhos e dizer que a escola é só problema da família? A família que não consegue achar uma boa escola… Não é só problema do professor, não é só problema da direção. Por vezes, o professor tem ideias revolucionárias, tem ideias inclusivas mas o diretor não quer. A inclusão começa desde a hora da matrícula, desde a recepção, quando a mãe vai fazer a matrícula da criança. Vocês percebem como não se pode tratar de forma isolada? Porquê, por exemplo, se é fornecida toda a formação para o professor, mas não se forma a tia da secretaria sobre como receber essa criança… Se não há transporte inclusivo, se não há as TEGs, Transporte Escolar Gratuito, que tenha acessibilidade para cadeira de rodas… Não se vê Braile nos corrimãos das escolas. Eu não conheço uma escola sequer que tenha corrimão, que tenha piso tátil para deficiente visual, que tenha a mínima formação em LIBRAS. Hoje muito se fala das deficiências intelectuais e LIBRAS. Nós vamos continuar deixando LIBRAS só para escola de surdos? Não. Nós precisamos trazer para cá [para além das escolas de surdos, para outros espaços de educação]. Deveria haver uma máquina de Braile funcionando em cada escola. Nós falamos de violência, de utilização de substâncias, esse tipo de coisa, tecnologia assistivas, mas ainda há muito o que reparar dentro daquilo que já se conhece, porquê nos falta piso tátil nas escolas, por exemplo. Podemos não atender crianças com deficiente visual, mas a mãe pode ser deficiente visual. Ainda há muita falta, muitas escolas têm ainda uma estrutura muito antiga: não tem elevador, não tem rampa…
Maíra - Como são as famílias das crianças que você atende? Elas têm algum problema de desestruturação? Tem algum problema com uso de substâncias?
Isabel - Então, a maior parte das famílias que eu atendo têm como problemática a grande solidão que elas sentem. São mães solo na maioria das vezes. A maior dificuldade que elas enfrentam é a falta de rede de apoio, das UBS, a falta de conhecimento dos próprios direitos e deveres. Muitas demoram dois ou três anos para levar o filho ao neurologista. Muitas não conseguem o laudo logo no início. Não é fácil o acesso. Então a grande dificuldade que elas enfrentam ocorre porque são de extrema vulnerabilidade. São poucas as que têm mais condições. Mas falando de um modo geral, até para não expor as famílias, as maiores dificuldades são estas. Por vezes o pai abandona, a vó renega… São problemas mais de cunho emocional e também da falta de rede de apoio, falta de informação, essas coisas… Muitas famílias ficam três anos para conseguir levar o filho no neurologista, então ficam nessa angústia de não saber o que que o filho tem. Qual é o problema psicológico que ele tem, que faz com que ele precise de tratamento. Uma coisa bacana que fazemos, é que as crianças que atendemos que têm até 7 anos, quando eles realizam o atendimento, que ocorre para até três crianças, as mães são convidadas a participar. No início, elas não sabem exatamente o que a terapia faz. As terapias não são função da família, é nossa, mas elas conseguem ver o que melhor atinge o filho dela, como é feito. Então, por exemplo, se a criança chega até nós sem conseguir ter a deglutição direito, a fonoaudióloga vai trabalhar isso. Ela sabe como servir água, como segurar o canudo… Nós convidamos as famílias a participar justamente porquê sabemos que falta essa rede de apoio. A criança atendida vai para um grupo maior, de 10, 12 crianças, quando passa dos 7 anos. A psicóloga faz, uma vez por semana, uma reunião com as mães, onde levam artesanato, um crochê, para elas fazerem e vai fazendo… E é como se fosse uma terapia em grupo, não é a mesma finalidade da terapia, mas é para prestar esse suporte para as mães. Elas precisam entender que os filhos têm direito e também têm deveres. Já atendemos casos da mãe falando que a criança não consegue ter adaptação nenhuma na escola. Foi em uma escola de Ensino Médio que nós fomos prestar apoio. Quando chegamos lá, a mãe não levava a criança para escola. Já tinha, por exemplo, cem faltas em português. Precisamos conscientizar essa mãe também, sobre a importância dessa união. É por isso que eu saliento sempre: não é um problema individual, de um ou do outro. Não tem como apontar dedos, julgar culpados, vai muito além. É um problema estrutural da nossa sociedade, a nossa sociedade não foi feita para as pessoas com deficiência. Principalmente a cidade de São Paulo não foi uma cidade feita para pessoas com deficiência, não foi pensada para pessoas com deficiência. Isso é muito triste porque a gente aprende muito com as pessoas com deficiência. São as pessoas que mais tem resiliência, são pessoas plenamente capazes e é comum não conseguirmos acessar essas pessoas. A nossa própria sociedade, e eu falo até de uma camada baixa, estou falando até da estrutura predial da cidade. Falando assim, da primeira camadinha, a mais alta, se você for andar na rua, vai ver que ela não é planejada para uma pessoa com deficiência. E aí você vai vendo a escola, você vai vendo os empregos, vai vendo os hospitais, os locais da área médica também não foram feitos para pessoas com deficiência. Por isso que as mães de pessoas com deficiência têm tanta resistência a enviar para a escola. Nós tratamos muitos bebês prematuros porque a prematuridade é um dos fatores de risco, então nós fazemos essa prevenção. Nós atendemos os bebezinhos prematuros, até mesmo para evitar uma deficiência intelectual. Por vezes a mãe já viu que a criança não vai passar de três, quatro ou cinco semanas. A criança conseguiu sobreviver, então, dependendo do caso, a mãe vai percebendo que todos estão renegando o filho dela e ela ainda vai ter de levar para escola.
Maíra - Vocês fazem trabalho de estimulação essencial também?
Isabel - Sim. Nós somos uma ONG que se chama Centro Israelita de Apoio Multidisciplinar, CIAM. Nosso serviço são totalmente gratuitos. Os bebês prematuros, até os seis meses, recebem estimulação essencial, com fisioterapeuta e fonoaudiólogo. Então é feita toda uma avaliação pelo serviço social, realizam uma avaliação funcional da criança com a família. Então a criança frequenta fisio e fono. A partir do 6 anosa criança continua no essencial, mas aí vai para psicopedagoga e para psicóloga. Do 6 até os 7 anos, pedagoga e a partir dos 7, anos vai para o NACIS, Núcleo de Apoio à Convivência e a Inclusão Social. O Núcleo ocorre entre 10 e 12 pessoas, onde eles aprendem a se servir na hora do almoço, a levar o prato, a jogar a comida que sobrou no lixo, a fazer a própria comida… Nós temos uma cozinha experimental, então eles aprendem a cortar o queijo para fazer um hambúrguer. A criança com paralisia cerebral, por exemplo, ela não consegue cortar o queijo, mas ela consegue mexer a massa do pão, então ela mexe a massa do pão. O que é mais esperto, que tem síndrome de Down por exemplo, consegue cortar o tomate. Outro consegue lavar o alface, outro consegue passar maionese… Então eles vão fazendo essas coisas. Também tem estimulação cognitiva. A fisio é liberada para usar piscina, então faz estimulação aquática das crianças. Paralelo a isso, há os jovens, cujo grupo é dos 12 até os 18 anos. E vão ocorrendo outros serviços de apoio: psicologia, acompanhamento escolar, as cadeirinhas de posicionamento, também há as tecnologias de baixo custo. Nós fornecemos as cadeiras em papelão para as crianças. Elas não precisam pagar para ter a cadeirinha. Plano inclinado… A cadeirinha pode só chegar no CIAM para adquirir o material. Nós sempre fornecemos dois: um para escola e um para casa. Por exemplo, a criança precisa para ficar na escola, para poder ficar sentadinha. Para a criança ficar de pé em uma roda, nós fornecemos parapode.
Maíra: Inclusive, a questão da tecnologia de baixo custo, se eu soubesse como fazer um plano inclinado, eu faria. Não deve ser difícil fazer de papelão.
Isabel - Nós usamos um papelão reforçado, aquele papelão de fábrica, é um papelão bem mais duro. Há uma fábrica que nos fornece os papelões, então nós fazemos nos papelões não é difícil mas tem que ter a medida exata de cada criança para tanto que as cadeirinhas. Elas não podem demorar mais de um mês ou 15 dias para serem feitas porque, se a criança cresce um pouquinho ela já não serve mais. É um trabalho bastante individualizado para cada aluno.
Maíra - Agora me fale um pouco sobre o seu trabalho exatamente. Então na verdade, o seu trabalho é dar apoio às escolas e às famílias? Vocês realizam assessorias pedagógicas para os professores? Como é esse contato com as famílias? Vocês marcam reuniões? Claro, nós já falamos um pouco sobre isso. Das reuniões onde vocês fazem o crochê é algo provavelmente mais descontraído, mas como ocorre esse contato com a família?
Isabel - Eu geralmente faço um filtro porque o CIAM atende muita gente. Eu faço um filtro das crianças de 4 a 7 anos e realizo o primeiro contato. Telefono para família, falo “Oi mãe, o seu filho como está na escola? Está tendo algum problema? Você precisa conversar? Você gostaria de conversar? Gostaria de vir até aqui conversar comigo ou você prefere online? Eu procuro flexibilizar, porque, como já foi comentado anteriormente, existem mães solo que precisam trabalhar. É complicado. Então eu realizo esse primeiro contato com elas. Eu tenho uma ficha onde eu registro sobre o desenvolvimento educacional. Não é de forma alguma para engessar a família, mas é para dar um norte daquilo que eu devo perguntar, pedagogicamente. Eu pergunto a criança está sendo estimulada no ambiente educacional ou não, se o filho come na escola, se o filho precisa de auxílio com essa alimentação, se ele ainda usa fraldas, se tem auxílio na troca… Se a criança já é adaptada, se a professora constrói material adaptado, caso a professora não construa, pergunto se acha que a criança precisa. Quando a mãe responde sobre essas atividades, eu já percebo se a criança é da Educação Infantil, se é do Fundamental, se há todas essas adaptações. Eu pergunto quantas reuniões a escola fornece, se a mãe se sente à vontade para ir nas reuniões. Há mães de crianças atípicas que não se sentem à vontade porque, por exemplo, vê todos os outros pais ganhando atividades, portfólios, e os do filho dela não tem. Então essas mães não gostam de ir às reuniões. Eu vou fazendo todas essas perguntas: pergunto se ela já precisou ir à escola, se a escola já a chamou, como é essa relação. Pergunto se já a chamaram na secretaria, como a trataram. Pergunto se a mãe tem contato com a coordenação e a direção, se tem contato com o professor… Inclusive para entender se a mãe vê a escola como parceira, se a escola tem essa profundidade. E eu finalizo sempre perguntando se há mais algo que ela queira falar ou perguntar. Há mães que vão para falar do pedagógico e acabam contando diversos problemas: questões com o marido, por exemplo. Agora nós temos uma psicóloga dentro do projeto. Ela entra comigo e faz todo esse suporte. Inclusive oferecemos para a mãe, perguntamos se ela gostaria de ser encaminhada para o serviço de psicologia. Nós podemos ajudar porque a psicóloga do CIAM não oferece apenas atendimento para as crianças, mas para família também, principalmente para os irmãos. O irmão muitas vezes se sente excluído, renegado, nasceu o irmão com deficiência e eles sentem que a mãe não me dá mais atenção, não cuida mais deles. Nós prestamos esse apoio. Então ela me passa o endereço da escola e eu ligo. Quando eu ligo para escola, nunca falo que eu gostaria de saber como é o desenvolvimento da criança na escola. Eu não sou mais uma pessoa a me intrometer e saber como está funcionando aquele lugar. Eu tomo esse cuidado, principalmente com a escola. Então eu falo que nós fazemos a estimulação do aluno e eu gostaria de saber o quanto a nossa estimulação está influenciando, auxiliando no seu ambiente profissional, o quanto nós estamos ajudando a escola. Geralmente essa abordagem funciona. Eu sempre fui bem recebida, nenhuma escola, nem particular, nem pública, nem Estadual, nem Municipal me recebeu mal. Eles falam que, quando o aluno está sem estimulação, eles não conseguem. A clínica não pode passar nada, não pode falar sem autorização sobre a criança. Como nós já conversamos com os familiares, jé temos essa autorização. Para nós é mais fácil dialogar, mesmo porque nós temos um núcleo de profissionais só para ir às escolas. Também fica a dica para os professores que fazem esse tipo de contato, porque às vezes se sentem pouco à vontade na hora de chegar na escola. Eu vejo que existe um certo receio dos professores, de abrir o seu trabalho de mostrar o seu trabalho, então eu vejo que essa aproximação que se faz, de procurar saber como o meu trabalho está influenciando no cotidiano do aluno na escola, é extremamente palatável, aceitável. Os professores às vezes também precisam de apoio sim. Não se pode pegar a fragilidade de um e sobressaltar a fragilidade do outro. Não se pode colocar a fragilidade da família acima da fragilidade daquele professor, porque assim eu estaria renegando a fragilidade do professor, sendo que eu já lido com uma família que é renegada. Eu não posso fazer o mesmo. em minha visão seria extremamente injusto e inadequado sobressair uma fragilidade em detrimento da outra. Não existem culpados. O processo é muito delicado. A inclusão é um processo muito delicado porque mexe com aquilo que é intrínseco dentro de cada um. Por exemplo, eu sou branca, moro em São Paulo, não tenho nenhuma deficiência, mas eu sou gordinha embora seja branca. Às vezes a gente se sente renegada de certa forma. Todo mundo em algum momento se sentiu renegado. Então quando eu vou na escola eu não posso ofender aquele professor, dizer que ele tá errado, porque eu não vivo o cotidiano dele. Então eu tomo bastante esse cuidado, de falar: “Eu quero vir aqui para ver como o aluno está se saindo.” Ás vezes é um trabalho de formiguinha Às vezes o meu trabalho eu vou ali uma hora, uma hora e meia, duas horas, e escutando aqueles profissionais. Às vezes eu não consigo passar disso e outras vezes eu vou para a escola, eu levo uma formação… Certa vez nós levamos uma formação lindíssima. com uma especialista em deficiência intelectual e síndrome de Down. A coordenadora falou uma coisa que a professora não gostou e acabou sendo aquele momento um momento para desabafar, um momento para conversar sobre tudo que está guardado. A gente parou a palestra, mediou o conflito entre os próprios profissionais. Eu no final ressaltei a importância desses momentos. Muitas vezes não há tempo para especificamente isso, porque o calendário acadêmico é muito grande. Nós temos as vezes ali 20 minutos antes da reunião de classe para falar sobre o que sente. O profissional da pedagogia também se sente frustrado, tanto quanto a criança, tanto quanto a família. Então eu não teria uma ética profissional porquê apesar de eu não estar na escola, eu sou pedagoga. Então eu não teria ética com os meus colegas se eu não prestasse esse cuidado na relação com o outro. Eu até brinco, porque eu adoro falar, mas mas a vida colocou a mim, que adoro, falar nesse trabalho onde eu preciso escutar. E não é só uma escuta daquelas que entra por um lado e sai pelo outro, é uma escuta qualificada, que vai de forma relevante considerar a pessoa. Porque, por exemplo, o que vai ditar muito também de como é a inclusão é o entorno da escola. Tem escola de periferia… Que é impossível acessar essa Periferia mas que conseguiram acessar essas pessoas e conseguiram mostrar para elas que a vida vai muito além daquilo que a ele foi imposto, do que ele foi designado. Muitas vezes, as pessoas que estão na escola são marginalizadas, ms a elas só coube a marginalização. Essas pessoas já foram tratada como marginais, já as colocaram à margem. Então como que eu vou chegar e falar de sonhos, falar de pedagogia, falar de filosofia para ela se ela já é marginalizada porque ela nasceu na periferia. Então, por exemplo o jornal é de Osasco [Jornal ABorda, para o qual a entrevista foi originalmente realizada.] aqui é uma região periférica, como é que vai chegar lá na comunidade do Sal vou falar de Freud, vou falar de sonhos ou vou falar para criança que brinca no córrego no lixão que existe uma pedagogia para ela e para família? Como? Não dá. Então tem que tomar muito cuidado com isso, porque a inclusão vai passar também pelos arredores da escola. É um trabalho de formiguinha.